OUVIDO: O INTÉRPRETE DOS SONS

OUVIDO: O INTÉRPRETE DOS SONS

 

Saiba até que ponto os limites da audição humana podem interferir na reprodução musical

 

POR VINICIUS BARBOSA LIMA

 

“O universo é incolor, inodoro, insípido e silencioso. As percepções diferem, qualitativamente, das características físicas do estímulo, porque o cérebro extrai uma informação e a interpreta em função de experiências anteriores com as quais se associe. Experimentamos ondas eletromagnéticas, não como ondas, mas como cores. Experimentamos objetos vibrando, não como vibrações, mas como sons. Experimentamos substâncias químicas dissolvidas em ar ou água, não como químicos, mas como cheiros e gostos específicos. Cores, sons, cheiros e gostos são construções da mente, a partir de experiências sensoriais. Eles não existem como tais, fora de nosso cérebro”.

As palavras soam complicadas, mas traduzem uma incrível realidade: cores e sons não existem! O que há são ondas eletromagnéticas, que só se tornam cores, por exemplo, quando interpretadas pelos olhos e sistema neurológico de seres vivos. Essa perturbadora visão foi apresentada por Jorge Martins de Oliveira, professor da UFRJ e diretor do Departamento de Neurociência do Instituto da Pessoa Humana (RJ). 

Segundo ele, a grama não é verde, o céu não é azul. Cor é a sensação registrada quando a luz de diferentes amplitudes é enviada ao nosso cérebro. Ela é observada e interpretada a partir de objetos que emitem determinadas amplitudes de luz. Mas, para os nossos olhos, o mundo é colorido. 

Portanto, há uma maneira de transformar tais irradiações eletromagnéticas em algo inteligível para nós. As cores estão em nós, e não nos objetos, senão como explicar o daltonismo, uma deficiência que impede certas pessoas de perceberem algumas cores, em especial o vermelho?

O mesmo vale para o som. Pode-se dizer que não existe. O que ocorre são ondas de vibração, de natureza mecânica, que movimentam as moléculas do ar atmosférico. Esse se encarrega de conduzir tais ondas até nossos ouvidos, onde as vibrações serão traduzidas em pulsos elétricos, interpretados por nosso sistema neurológico como sons. 

Mas notem que o som surgiu apenas na fase final da interpretação das informações angariadas (as vibrações mecânicas), já que originalmente ele não existia na natureza. 

Fica, então, a pergunta: nossas caixas acústicas emitiriam som, se não houvesse no local ninguém para ouvi-lo? A resposta, nua e crua, é não! Através do movimento de excursão dos falantes, são formadas ondas de compressão, as tais vibrações mecânicas, que posteriormente serão por nós interpretadas como sons. Se não houver nenhum ser vivo por perto para captar tais vibrações, não existe som, mas sim uma sucessão infindável de ondas mecânicas vagando pela sala.

Em termos perceptivos, o som pode ser definido em altura, timbre e intensidade. O timbre está associado à qualidade do som e à composição harmônica, na qual cada nota musical é composta de uma freqüência fundamental e de complexa combinação de harmônicos superiores (múltiplos da freqüência fundamental). A altura está relacionada com a percepção de grave e agudo. Quanto mais agudo, mais alto é o som. 

É algo bastante subjetivo, já que depende diretamente da capacidade de audição do ouvinte. Por fim, a partir da intensidade sabe-se se o som é forte ou fraco.

A capacidade de audição diminui com a idade, o que é um fato comprovado, e não apenas uma teoria. Pesquisas mostram que o ápice da audição ocorre entre os 5 e os 17 anos, ou seja, entre a flor da infância e o auge da adolescência. Assim, é improvável que alguém, aos 60 ou 70 anos, ouça tão bem quanto no passado. Nessa idade, é muito difícil conseguir ouvir abaixo dos 80Hz e acima dos 16kHz. 

A perda de audição é imperceptível, já que ocorre gradativamente ao longo de muitos anos. Assim, é comum também a pessoa achar que ouve todos os detalhes da reprodução musical; afinal, a faixa de freqüências a cumprir é consideravelmente menor. A verdade é que o tempo é implacável, não faz concessões a amantes da música e/ou proprietários de configurações high-end. Se o equipamento apresentar, por exemplo, uma grave deficiência na faixa dos 45Hz, ou ainda dos 19kHz, é possível que ouvidos jovens e treinados identifiquem tais anomalias, mas dificilmente alguém com mais de 65 anos teria condições de detectá-las.

O natural processo de envelhecimento, mesmo em pessoas de meia idade, é acompanhado de gradual perda na percepção auditiva. Algumas sensações nos acompanham até o final da vida, devido a sua natureza. Outras, como a percepção do timbre, deterioram-se facilmente. 

Para efeito de medições práticas, é utilizado um aparelho denominado audiômetro, no qual um oscilador gera “tons puros” de diversas freqüências, que serão atenuadas através de um controle de intensidade. Os tons são transmitidos aos pacientes em intensidades decrescentes, até ser atingido, para cada tom, o limiar pessoal da audição. 

No áudio, assim como em quase tudo na vida, limites são difíceis de serem alcançados com resultados satisfatórios. Equipamentos encontram dificuldades em reproduzir freqüências próximas aos extremos do espectro audível, e em muitos casos sequer conseguem reproduzi-las. Da mesma forma, o ouvido humano encontra grandes dificuldades em detectar as freqüências limites da audição (20Hz e 20kHz), e também as muito próximas a elas, o que está relacionado diretamente com a mecânica contida nas ondas sonoras. 

Ondas de baixa freqüência possuem pouca energia, e portanto não conseguem gerar vibração suficiente para excitar o tímpano. Por outro lado, ondas de alta freqüência, extremamente energéticas, não são percebidas, pois atingem o ouvido com muito mais rapidez. É como se o tímpano não tivesse tempo para se preparar e enviar os sinais ao cérebro, já que eles chegam mais rápido do que o tempo levado para o tímpano interpretar uma vibração. 

Porém, como em geral os sons que nos cercam se situam bem longe dos extremos (por exemplo, a voz humana reside na região média do espectro), não se nota a perda gradual de audição. Isso porque em determinado momento nossa pessoal gama audível irá coincidir com as freqüências melhor reproduzidas pela configuração de áudio, descartando aquelas que os equipamentos possam não reproduzir tão bem.

Mesmo depois de todas essas informações, perdura a questão: se nós humanos podemos ouvir apenas a restrita faixa de 20Hz a 20kHz, por que muitos fabricantes utilizam, como artifício de marketing, a informação de que seus equipamentos são capazes de reproduzir freqüências de até 100kHz, algo comum nos novos formatos de áudio multicanal – DVD-Audio e SACD (Super Audio CD)? 

Que os ouvidos humanos não conseguem captar e interpretar freqüências tão altas é fato cientificamente comprovado. E quando se diz que tais freqüências não são captadas pelo aparelho auditivo, automaticamente afirma-se que não foram encaminhadas ao sistema nervoso, não sendo também interpretadas e reconhecidas pelo cérebro. J

á testemunhei, em feiras de áudio, alguns “entendidos” afirmarem que “nosso ouvido não pode captar essas freqüências, mas nosso cérebro é capaz de percebê-las”, o que se configura em imperdoável heresia fisiológica.

Trata-se de uma questão técnica de eletrônica, que nada tem a ver com a capacidade do ouvinte. A resposta de freqüências estendida para além dos limites da audição traz benefícios que irão se manifestar dentro da gama audível, e que vão estar diretamente relacionados com a tecnologia utilizada na topografia do circuito de áudio e na qualidade final do produto em si.

Para que um equipamento atinja ampla resposta de freqüências, é necessário que tenha excelente comportamento ao longo de todo o espectro, um desempenho linear, sem sobressaltos ou atenuações. Qualquer perda considerável em determinada freqüência vai afetar as imediatamente adjacentes, sejam anteriores ou posteriores. 

Vamos estudar um exemplo: certo equipamento apresenta queda de 6dB ao reproduzir a exata freqüência de 12kHz. Como é impossível uma queda de desempenho tão grande ocorrer de forma abrupta, essa perda de 6dB na verdade já vem se manifestando nas freqüências anteriores, digamos a partir dos 8kHz de forma gradativa até atingir “o fundo do poço” aos 12kHz. 

Da mesma forma, supondo que o aparelho consiga aos poucos se recuperar do “buraco”, gradativamente haverá reforço nas próximas freqüências, até atingir uma posição “flat”. Com certeza, a resposta de freqüências desse equipamento não passará dos 17kHz, já que o jogo de sobe e desce, com perdas e ganhos aqui e acolá, vai impedir que se tenha um resultado geral satisfatório. 

Trocando em miúdos: imaginem um bólido de Fórmula-1. Se ele não contornar a curva que antecede a grande reta em boa velocidade, sua velocidade final em reta acabará prejudicada. Por outro lado, se o maior obstáculo for a curva no final da reta, com certeza será necessário frear antes, o que resultará igualmente em menor velocidade final. 

Em compensação, se o piloto contornar ambas as curvas (de entrada e final da reta) em velocidade ideal, não haverá perda de velocidade na reta, o que se traduzirá em precisos décimos de segundo ao final da volta. É fácil notar como um acontecimento isolado pode influenciar os demais.

De volta ao áudio, notem que o fator limitante na resposta de freqüências do equipamento foi seu comportamento não linear ao longo do espectro audível. Portanto, para que o mesmo aparelho conseguisse uma ampla resposta de freqüências, na casa dos 100kHz, deveria ter como principal característica a linearidade, ou seja, um desempenho uniforme, sem altos e baixos.

Conclui-se, então, que quanto menos atenuações ocorrem pelo caminho do sinal, mais longa será a resposta de freqüências final. Mas, e daí? Ora, se o equipamento conseguiu chegar aos 100kHz é porque perdeu muito pouco ao longo das demais freqüências do espectro. Isso significa que na faixa audível aos humanos (20Hz a 20kHz) foi apresentado um desempenho muito bom com grandes possibilidades de apreciação da reprodução musical. 

É essa a melhora detectada pelos nossos ouvidos, e que explica toda a vantagem de formatos de alta qualidade, como o DVD-Audio e o SACD. E esse desempenho geral só pode ser alcançado com muita tecnologia, seja aplicada na parte eletrônica, seja na própria mídia.

A FORÇA DO TREINAMENTO AUDITIVO

Será que a percepção auditiva pode melhorar com o treinamento? Beverly A. Wright e Matthew B. Fitzgerald, cientistas do Departamento de Ciências e Distúrbios da Comunicação e do Instituto de Neurociência da Universidade Northwestern (EUA), desenvolveram interessantes estudos que sugerem uma resposta para essa debatida questão.  

O estudo parte do princípio de que duas das sugestões primárias usadas para localizar fontes sonoras são as “diferenças de nível (ou intensidade) no ouvido” (interaural level differences, ou ILDs) e as “diferenças de tempo no ouvido” (interaural time differences, ou ITDs). 

Em resumo, essas sugestões formam o conjunto de informações que uma pessoa utiliza para localizar a fonte sonora. O objetivo foi descobrir se o treinamento e armazenamento de informações na memória auditiva poderiam melhorar a habilidade humana de detectar e identificar a localização de fontes sonoras e suas características.

A seguir, foram conduzidas duas experiências visando explorar como a prática afeta o discernimento humano para valores de ILDs e ITDs. Nos testes, mediram-se os limites de percepção e discernimento em um público que variou entre 13 e 32 ouvintes, todos com perfeita saúde, sendo 22 mulheres e 10 homens, com idades entre 18 e 44 anos. Nova bateria de testes foi repetida duas semanas depois.

A fase inicial da pesquisa mostrou que as coordenadas horizontais da fonte sonora são dadas pelas diferenças das informações que chegam aos ouvidos. Em freqüências acima de 1,5kHz, ouvintes conseguem definir desde o ângulo em que se encontra a fonte (azimute), até diferenças de nível sonoro percebidas por cada orelha. 

Esses ILDs acontecem porque a cabeça forma uma barreira ao som entre as duas orelhas, fazendo com que os sons sejam mais intensos na orelha mais próxima da fonte e atenuados na que está mais distante. Já em freqüências abaixo de 1,5kHz, a percepção fica por conta das diferenças de tempo de chegada (ITDs) do som nas duas orelhas. 

Novamente, está presente a condição das orelhas separadas pela cabeça, fazendo com que o som chegue primeiro na que está mais perto da fonte sonora, para depois chegar à outra. Se a diferença de tempo de chegada for inferior a 150ms (milisegundos), o ouvinte terá grande sensibilidade para detectar a tonalidade do som captado. Portanto, a percepção pode ocorrer de forma diferente em cada uma das orelhas, algo similar ao som estéreo e ao som mono, só que ocorrendo simultaneamente.

Os ouvintes foram submetidos a diversas baterias de testes, em inúmeras situações de ILDs e ITDs. Os sinais sonoros variaram entre 0,5 e 6dB e foram aplicados simultaneamente às duas orelhas, ou de forma individual, pelo período de uma hora por dia, durante nove a dez dias, perfazendo cerca de nove horas de treinamento auditivo. Após duas semanas, o processo foi repetido.

Os ouvintes, por vezes, eram encorajados a adivinhar a origem do som logo na primeira tentativa, ou esperava-se que armazenassem as informações, de maneira a identificarem as coordenadas quando da repetição da bateria de testes. Resultado: todos apresentaram expressiva melhora nas percepções de ILDs e ITDs, principalmente nas condições em que o sinal usado foi de alta freqüência (acima dos 4kHz). Já para a região média, os números foram mais modestos.

É interessante observar que a melhora na percepção auditiva era inicialmente muito rápida para ambos os tipos de sugestões (ILDs e ITDs), o que sugeriria a existência de um padrão geral, algo conceitual. Com o decorrer dos testes, a melhora tornou-se mais lenta, o que só aconteceu nas sugestões de ILDs. Assim, foi preciso aumentar a freqüência do treinamento para compensar o fato. Isso mostrou aos pesquisadores que a aplicação de sugestões de ILDs e ITDs de forma separada em muito afeta a capacidade humana em perceber e localizar sons.

Ainda que a pesquisa tenha sido voltada para outros interesses, tem considerável importância para os estudiosos do áudio hi-fi. Comprova, pelo menos em parte, as alegações de que pessoas podem aprender a ouvir músicas e sons de forma mais completa e detalhada a partir do momento em que se habituem a apreciar a reprodução eletrônica do som em equipamentos de elevada qualidade (high-end). Esses aparelhos são capazes de reproduzir todo o espectro auditivo, e até microdetalhes e nuances da peça musical. Sem dúvida, um grande deleite para o público audiófilo. 

Por outro lado, a pesquisa não nega vigentes conceitos científicos sobre os limites da audição humana, como também não pode ser tomada como verdade absoluta, já que dentro de um universo de mais de 5 bilhões de seres humanos do planeta, apenas 32 pessoas participaram do experimento.